quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Crônica em dois dias. (crônica)

Crônica em dois dias.

Dia 1. É preguiçoso querer pensar nas idéias, sua natureza, seus significados, de onde vêm, onde ficam guardadas e por que aparecem de vez em quando. É difícil tentar concebê-las a partir da nossa vontade particular. Talvez o simples querer não faça parte do mecanismo de funcionamento das leis que regem suas manifestações.

Outro dia descobri que não são os olhos que vêem, mas o cérebro. Nunca tinha parado para pensar nisso, mas me surpreendeu descobrir que os olhos não vêem. Foi um choque! De todas as coisas que vêem, os olhos são a última delas que eu imaginaria que não vissem. É muito estranho. É como dizer que os ouvidos não ouvem. Até arrisco dizer que se os olhos não vêem também os ouvidos não ouvem. Pensei em acrescentar o nariz e dizer que também o nariz não cheira, mas aí me ocorreu, num lampejo, que não seria uma boa idéia incluir o nariz. O nariz é sujo!

Às vezes penso se as idéias vêm de nós e não de outro lugar, ou se vem de nós e de outro lugar. Talvez seja meio a meio: metade de dentro, metade de fora, mas não tenho certeza. Mas se os olhos não vêem, por que as idéias não viriam de outro lugar? Por hora, deixemos a origem das idéias para outra oportunidade. Falemos das vozes dentro da nossa cabeça.

No processo de construção de idéias do parágrafo segundo desta página, eu pude identificar três vozes, cada qual atuante em seu respectivo plano de ação: há a voz daquilo que eu estou escrevendo e em que eu estou me concentrando agora e há também outra voz, cujo plano atua ao redor da primeira, como que envolvendo esta, embora não se toquem e de onde a sugestão de que o nariz é sujo veio. Acho que o primeiro plano, o da voz principal, por influência da segunda voz, decidiu não incluir o nariz, porque é sujo e poderia contaminar a beleza da imagem que se pretende criar, já que o paradigma de beleza não inclui a sujeira, que não é bela, por ser suja. Há também a minha voz, que tem poder de decisão e que, neste caso, decidiu por não incluir o nariz. Eu poderia ter optado por incluí-lo, idéia que, inclusive, me ocorreu, mas então eu teria que achar uma maneira de embelezá-lo, e fazer isso seria trabalhoso.

Foi então que eu pensei na boca e não veio sugestão de sujeira, apesar de poder ser mais suja que o nariz e o ouvido juntos, principalmente se o dono cultivar o mal dizer. Mas agora preciso repensar um pouco, porque se os olhos não vêem, a boca fala. Não dá para dizer que a boca não fala, porque ela fala. As palavras saem da boca. Quem pode ouvir, ouve!

Mas voltemos aos olhos. Me disseram que os olhos não vêem, que quem vê é o cérebro. Admito que, de muitas descobertas interessantes que tenho feito a de que os olhos não vêem foi a mais marcante. É como se, cego, tivesse vivido toda a vida. O fato de olhos estarem sempre tão presentes, tão à vista, e eu não ter percebido que eles não vêem, me faz pensar na quantidade enorme de outras coisas que eu acho ser e que não são.

Tudo isso é muito interessante simplesmente porque pensar em coisas assim abre espaço para as pessoas criarem, porque parece que, na ordem como tudo está, há pouco ou nada para ser criado. Eu até li ou ouvi algo como “hoje em dia nada se cria, tudo se copia”. É engraçado como a diferença entre essa afirmação e a de que os olhos não vêem é escancarada. Outro dia estava tentando ler um livro de filosofia, daqueles fáceis, que tentam explicar o que uma coisa é e como funciona. Havia uma parte que falava da verdade, o que é a verdade e o que não é. Na verdade não tenho certeza agora se essa parte estava de fato no livro ou se aquela tentativa de ler aquele livro sobre filosofia atraiu a palavra verdade ao plano desta construção, mas acho que essa questão fica bem exemplificada quando comparamos as duas afirmações acima: ainda não pensei nem como nem por que, mas vamos descobrir ao longo da exteriorização.

Eu acho que a afirmação “os olhos não vêem” possui a verdade nela e acho que a afirmação “nada se cria, tudo se copia” não possui a verdade nela. Acho que é assim porque a segunda afirmação é covarde quando quer matar as pessoas, na medida em que pretende tirar delas a razão pela qual a existência humana se resume, ou seja, criar. Um pouco antes, estávamos falando da forma em que as idéias se organizam na cabeça, e enquanto eu estava escrevendo sobre os olhos, neste mesmo plano que escrevo agora, quando cheguei à palavra nariz, a idéia de sujeira surgiu no plano criador. Será que o mecanismo que diz que “nada se cria, tudo se copia” é parecido com o que diz “o nariz é sujo”?

Sabemos que é possível construir um nariz que não seja sujo. Sabemos que os narizes só são sujos quando alguém quer que sejam sujos, como a voz adjetivadora sugeriu, no momento da criação, a idéia de sujeira atribuída ao nariz. Eu não cunhei o mote “nada se cria, tudo se copia”, então não posso dizer sobre o posicionamento das vozes que agiram na cabeça do autor no plano criador daquela divisa. Só posso falar do meu nariz e do processo que fez com que eu o excluísse do meu texto, que fala sobre como o que é aparente pretende parecer possuir a verdade.

Dia 2. Voltemos à questão das afirmações “nada se cria, tudo se copia” e “os olhos não vêem”. Acho que estava falando de como a primeira é covarde. Vejamos: eu disse que não cunhei a divisa, então não podia falar dos mecanismos do plano de criação, então eu disse que a primeira afirmação é covarde porque mata o homem, acho que por isso disse que não contém a verdade nela, porque pretende matar o homem, ou seja, eu, você e os outros. Então acho que existe um ingrediente a que alguém, em algum momento, chamou de verdade, que necessariamente precisa existir no que se constrói para que o que surja no processo possua a qualidade da verdade, para que possua o ingrediente verdade em si.

Quando a ficha caiu que não são os olhos que vêem, fato que aconteceu com a velocidade de um relâmpago, mesmo não sabendo explicar química e fisiologicamente como isso é possível, eu senti que é verdade. Agora, eu me pergunto: qual é a natureza desse “sentir”? Me ocorreu que a época quando eu vivo, esta agora, do primeiro século do terceiro milênio, quando eu faço essa exteriorização, produziu o ambiente mental necessário para que eu “sentisse” a verdade naquela construção. O desenvolvimento da ciência, ao qual eu estou exposto, criou em mim um ambiente mental capaz de compreender que não são os olhos que vêem, mas o cérebro. Um cientista saberia explicar em detalhes como isso se dá.

Dizer que os olhos não vêem faz o bem quando propulsiona a criação, já que abre todo um novo espaço anteriormente ocupado pelo paradigma que foi rompido, e nesse espaço recém aberto, as possibilidades de criação são muitas. Saber que os olhos não vêem mudou o universo e sua estrutura, mudou tudo, para melhor, já que cria possibilidades. Todo um novo universo de criação surge quando os olhos não vêem, o que já não acontece quando tudo se copia. Acho que já ouvi ou li isso em algum, algo sobre a palavra que mata e a palavra que vivifica, mas, enfim, voltemos ao nariz. O nariz não é mais sujo que os olhos ou ouvidos ou a boca. Fala-se da remela dos olhos, da cera do ouvido, da caca do nariz. A boca, para mantê-la relativamente limpa, é preciso tratá-la diariamente com produtos especiais, no mínimo três vezes ao dia! Então qual a natureza daquela voz dentro de mim que me induziu a excluir o nariz? Por que o nariz tem que ser sujo? Por que o nariz? Por que dei ouvidos àquela voz? Por que lhe conferi legitimidade?

Ela (conto)

Ela.

De todas as imagens do turbilhão de imagens, que vem e que vão e que estão sempre em movimento em algum lugar dentro de nós, em forma de dança, cujo vai e vem intermitente se traduz por lampejos pouco distinguíveis, conscientemente difíceis de identificar, mas sempre presente; naquela confusão de qualidades, lá esteve ela presente, e se mostrava para mim, intacta, sempre igual, naquela fração de segundo em que eu a via sempre, e assim ela se marcou em mim, infinita.

Estavam caminhando. Eu era carregado em seu colo e estava assustado; estava escuro e eu não reconhecia aquele lugar, mas eu estava lá, em seus braços, e havia outros, talvez familiares; eu os sentia como familiares, de alguma forma me sentia parte deles, mas nunca consegui ver suas feições. A escuridão me assustava e eu não via o que estava ao redor. Eu sabia que era mato, mas não sabia como sabia. Muito tempo depois, na medida em que aquela imagem se repetia em minha mente, eu já achava que era cana.

Depois, ou talvez antes, acho que ouvi alguém dizer que era um canavial; eu ouvia barulhos; ouvi alguém falar sobre uma cobra que assoviava e um lobo que chupava cana. Eu tento lembrar se eu falava, mas não consigo. Caiana é uma cana especial, melhor que a cana normal, mais doce e mais macia, mais fácil de descascar também, porque é molinha; tinha muita cana antes, mas mesmo antes a caiana era mais difícil de encontrar (parece que tudo que é melhor é mais difícil de encontrar); o outro tipo de cana, mais dura e igual às outras - duras - tinha em todo lugar. Ainda tem muito!

A caiana era vermelha. Acho que havia outras cores além da vermelha, mas naquele tempo eu não prestava muita atenção. Ainda assim eu senti que cores bonitas eram atributos de coisas especiais, as mais difíceis de achar. Em algum momento, quando eu tinha crescido mais, eu chupei cana caiana, mas nunca aprendi muito sobre cores. O espaço entre a estrada e a cana era grande; eu experimentei a cana caiana muito tempo depois daquela noite. Na escuridão, mesmo não podendo ver as canas do canavial, eu senti que elas eram todas iguais, e acho que por isso senti medo.

Eu não tinha imagem de lobo guardada em mim, mas lembro alguém dizer que lobo era como cachorro, mas que vivia no mato, e tinha um tipo de lobo que vivia no canavial.

Naquela noite eu comecei a aprender sobre as palavras. Eu não tinha imagens para todas as palavras ditas, mas de alguma forma eu sabia o que era um lobo e o que era uma cobra, embora nunca tivesse visto nenhum deles.

Antes do canavial eu não lembro como era o medo. O canavial me mostrou como o medo se diz junto com as palavras que são o nome das coisas. As palavras que dão medo são ditas de outro jeito e junto ao jeito de dizer se diz alguma coisa nova, que ninguém sabe.

Eu não senti muito medo do lobo. Lobo era só um bicho. Mas aí alguém disse que o lobo chupava cana e foi aí que eu senti medo, porque aquele lobo não era normal; era como gente, porque gente chupa cana e até então eu não sabia que existia um lobo que era como gente, então eu tive medo, porque descobri que existiam animais que eram como gente; foi quando a idéia de bicho virar gente passou pela primeira vez na minha cabeça. Eu não queria que bicho fosse gente.

A cobra, que eu não vi, alguém disse que era grande. Eu tive medo da cobra porque ouvi o assovio dela e porque o que é grande dá medo, por ser grande. Essa palavra grande também sai da boca de um jeito diferente. Às vezes dá até medo.

Era um assovio que eu nunca tinha ouvido. Não sabia que cobras assoviavam. Mesmo no colo dela, abraçado pelos seus braços, eu sentia medo. Naquela época ela era mais calma, ela tinha mais coisas boas nela, eu sentia. Não lembro muita coisa dela. Até hoje não entendo porque ela nunca foi embora, continua lá.

Tinha pedra na estrada e tudo era seco, até o ar era seco e quente; eu não sentia o calor, mas era seco. Eu sempre imaginei como seria a cana chupada pelo lobo; tinha muita cana, o que equivale a dizer que o canavial era grande. Eu pensei que para aquele lobo não fazia muita diferença se a cana era caiana ou não. Mas eu não acho que tinha cana caiana lá porque alguma coisa me fazia pensar que aquelas canas eram todas iguais.

A cobra não assoviou mais. Todo mundo andava. Eu era pequeno e acho que por isso ia no colo. Essas coisas eu lembro bem, elas nunca foram embora, então são verdadeiras. Eu sei que elas aconteceram. Depois a gente chegou. Tinha uma casa, mas eu não lembro direito. Depois eu já era grande e o lugar era outro. Ela ainda cuidava de mim. Ela era boa, mas nesse tempo eu comecei a sentir que ela estava mudando. Em algum momento, antes desse tempo, eu experimentei cana caiana. Eu não me lembro de ter experimentado antes. Acho que eu lembraria se tivesse experimentado antes porque eu lembro quando vi o mar pela primeira vez e eu sabia que não tinha visto antes. Mas não tenho certeza quanto à cana caiana porque tinha muita cana no canavial e perto da casa, no outro tempo, então pode ser que eu tenha experimentado antes.

A cana foi como a neve, eu sabia que era a primeira vez, mas acho que já tinha visto antes em foto ou na televisão. Talvez a cana eu só tivesse visto antes e não tivesse experimentado. A neve não teve muita graça. De qualquer jeito, chupar cana caiana ficou gravado de outro jeito. Eu já tinha chupado da outra que é igual às outras, como às do canavial, mas a caiana era muito melhor; era especial.

Eu tinha descoberto que existem as coisas especiais. Não sei se ela era especial. Não me lembro muito dela. Mas ela era boa; ela cuidava de mim. Acho que ela era diferente. Experimentar a cana caiana foi especial. Ver o mar foi especial. A neve não chamou muito minha atenção, mas aqui eu também não prestava muita atenção.

Acho que gosto do mar. O mar é quente quando faz sol. Já o medo é frio, mesmo quando está quente, e ele tem me acompanhado desde aquele dia do canavial e foi crescendo à proporção em que eu fui percebendo que existe muito mais além de lobo chupar cana e cobra assoviar. Eu sabia que aquilo tudo não era natural, que tinha alguma coisa errada, mas eu era pequeno, e os pequenos não têm voz, só os grandes.

Acho que eu não gostei da neve porque não é como a água; precisa de roupa; na água não precisa, só de uma. O mar é infinito, nunca acaba. Mas o mar não dá medo, apesar de ser grande, porque é infinito. Eu não acho que o amor dela acabou. Acho que ela tinha problemas. Acho que as forças dela foram se acabando e ela não encontrou novas. Eu era pequeno. Não pude ajudar ela. Queria que alguém grande tivesse ajudado ela.

Acho que quando eu vi o mar ela já tinha ido embora. As estradas continuaram a se formar, já sem cana, sem cobra, sem lobo. Foram surgindo outros caminhos e outras pessoas que se sobrepunham uns aos outros no turbilhão confuso das imagens aparentes. Já não tinha mais colo e eu estava só. Não me sentia muito só, mas sentia muito medo. O medo sempre esteve junto, desde o dia em que descobri que ele existia. Já não tinha mais medo das cobras ou lobos; eles não faziam muita coisa além de chupar cana igual e assoviar; nunca estiveram novamente onde eu estive.

Eu não queria, mas fui forçado a conviver com outro tipo de bicho, que também assoviava e chupava cana. Com o tempo descobri que eu também era um desses bichos; por isso senti pouco medo da cobra e do lobo e por isso gostei tanto da cana caiana. Só que eu era ainda um bicho pequeno; nem sabia que era bicho, mas sabia que eu era alguma coisa porque eu sentia coisas, eu ouvia; não lembro se eu falava e só depois tentei aprender a assoviar. Nunca consegui assoviar bem. Eu não pensava como quando agora. Agora sei que sou, porque eu lembro. Antes eu não lembrava.

Eu nunca mais chupei cana caiana, mas ainda lembro como é, então eu sei que é especial, porque não apagou, ainda está lá, então foi bom.

Por Jonatas Santiago Souto

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Meu primeiro poema.

Ó, amor insuperável ! Dói-me a alma não ter-te aqui junto a mim; sinto-me um miserável ao insistir nesta vida infeliz sem ti. Vivo todos os dias o sofrimento de uma morte que nunca vem, e como quis que já tivera vindo, pois sem ti, nem mesmo a morte que a todos reclama vê em mim uma única chama que o valha.

Jonatas S. Souto.